Bombardeada pelo presidente petista da Câmara, Arlindo Chinaglia, e com escassas chances de passar no Senado, uma das mais descabidas medidas provisórias (MPs) já baixadas pelo presidente Lula - a que transforma a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca em Ministério, assinada em fins de julho - deverá ser retirada pelo Planalto, para voltar mais adiante ao Congresso sob a forma de projeto de lei. A rigor, como já se demonstrou neste espaço, a nova Pasta é de todo dispensável, qualquer que seja o procedimento adotado para a sua criação. Mas, ao escolher impensadamente o atalho da MP, o presidente levantou fortes resistências no Legislativo - ou um "mal-entendido", no delicado eufemismo do articulador político do governo, o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro.
A reação mais veemente talvez tenha surpreendido o Planalto, por ter vindo de onde veio e pelos termos com que se manifestou. De fato, em pelo menos uma reunião com o colegiado de líderes da Câmara, o deputado Chinaglia, ao que vazou, usou palavras como "acinte" e "achincalhe" para qualificar a iniciativa da MP. É possível que a contundência traduza a frustração do parlamentar por não terem sido levadas em conta as suas objeções, quando consultado pelos assessores presidenciais sobre a melhor maneira de encaminhar o upgrade da Secretaria da Pesca. Talvez se relacione ainda com rivalidades internas no PT, onde não faltou quem resmungasse que a promoção do secretário Altemir Gregolin a ministro era um prêmio despropositado à seção catarinense do partido, a que ele pertence.
De todo modo, o titular da Câmara ecoou a sensação dominante no Congresso de que Lula foi longe demais ao recorrer a uma medida provisória para alterar a posição hierárquica na administração federal de um órgão que já existe há quase seis anos - e que, de resto, tem sido um zero à esquerda na configuração política do governo. Não à toa - a julgar pela qualidade dos argumentos de Gregolin para justificar a MP. Ele invocou "a relevância do tema e a urgência, no sentido de que há necessidade de aumentar a produção de alimentos", como disse a um cético interlocutor, o dirigente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB. Garibaldi, a propósito, comparou ironicamente a desenvoltura do presidente em abusar das MPs a um recorde olímpico. "Ele, que foi para a China, precisava levar esse recorde", criticou.
Ao ignorar o Congresso na decisão de abrir lugar para a Pesca no seu congestionado escalão ministerial, Lula provocou um clima de animosidade que o próprio líder do governo no Senado, Romero Jucá, do PMDB, admite com todas as letras. "Melhor teria sido se a matéria tivesse chegado aqui na forma de projeto de lei", pondera. "Poderíamos ter feito um acordo de líderes para que tramitasse em regime de urgência constitucional", o que daria à proposta prioridade para votação. Naturalmente, ainda é tempo de remediar o estrago, sobretudo se o governo fizer as expressões corporais adequadas às expectativas da sua base parlamentar sobre a partilha dos 295 cargos de confiança, preenchidos sem concurso, que deverão forrar o futuro Ministério. O seu orçamento, na casa de R$ 500 milhões, será simplesmente o dobro do que toca à Secretaria.
O ministro José Múcio disse que "o que for confortável para ele (Chinaglia) nós faremos", a fim de assegurar o que chama de "produto final" - a criação da Pasta. O problema é que, no momento, a prioridade da Câmara é outra - a votação do projeto de emenda constitucional que regulamenta a tramitação das medidas provisórias.
No modelo atual, o prazo máximo de validade de uma MP é de 120 dias. Mas, se não for votada em 45 dias, passa a trancar a pauta da Casa em que estiver. A regra cerceia drasticamente a capacidade do Legislativo de votar propostas próprias. Entre outras mudanças, os congressistas querem acabar com o trancamento da agenda de votações e restringir o uso de MPs sobre matérias orçamentárias.
Mais importante ainda é a função que passariam a ter as Comissões de Constituição e Justiça da Câmara e do Senado, em rodízio, de julgar se cada nova medida provisória atende aos requisitos de relevância e urgência - o que o governo pretendeu, escandalosamente, que fosse o caso da MP da Pesca.
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