O que acontece quando os melhores cientistas do mundo decidem alugar o cérebro para fins nada nobres
William Happer está preso em seu laboratório há 3 dias. As portas estão trancadas e do lado de fora um bando raivoso grita insultos e o chama de assassino. Para sobreviver, conta com a esposa, que discretamente entrega cobertores e comida por uma janela que dá para a rua. Happer está cercado por colegas que se acomodam pelo chão e esperam a multidão enfurecida dispersar-se.
A cena acima aconteceu em abril de 1972, no campus da Universidade Columbia, no coração de Nova York. Para chegar à beira do linchamento, Happer cometeu um único crime: medir a rotação de núcleos atômicos e estudar técnicas de bombeamento óptico. Não entendeu? Bem, vale dizer que Happer é um físico e seu objeto de pesquisa não faria mal a uma mosca. Seu único problema eram as más companhias que freqüentavam a mesma equipe de trabalho – e daí o motivo dos protestos. Entre os colegas de Happer estavam dois integrantes do grupo secreto Jasons, acusado pela opinião pública de contribuir para crimes de guerra cometidos na Guerra do Vietnã.
Não é difícil de entender o porquê de tanta revolta. Imagine uma equipe de cientistas altamente qualificados, muitos deles ganhadores do Prêmio Nobel, contratados para ajudar o governo a desenvolver as mais eficientes (leia-se “letais”) armas de guerra. Agora acrescente o fato de que eles trabalham em segredo, sem divulgar o resultado do trabalho para o resto do mundo – exatamente o oposto do que cientistas deveriam fazer. Pois esses são os Jasons, coadjuvantes de alguns dos capítulos mais controversos da história americana recente: entre eles, a disputa armamentista na Guerra Fria e a matança de civis no conflito com o Vietnã.
Ciência por baixo dos panos
Tudo começou em 1957. Disposta a provar sua superioridade tecnológica, a União Soviética enviou ao espaço o Sputnik, primeiro satélite da história. Os EUA entraram em pânico. Eram tempos de Guerra Fria, quando cada lado precisava se mostrar mais forte que o outro. Ao lançar o Sputnik os soviéticos pavoneavam a seguinte mensagem: “Ei, americanos. Se temos um foguete capaz de chegar ao espaço, não há dificuldade em explodi-lo no quintal da sua casa”. Os EUA concluíram que, para dar o troco, precisariam investir pesado em ciência. Era hora de mostrar aos russos com quantos paus se faz uma bomba.
Foi nessa época que um grupo de cientistas decidiu se organizar para formar um pelotão especial. Eles trabalhariam independentes do governo, mas reuniriam um dream team da física para pesquisar armas de guerra. Tudo no maior segredo. O local de trabalho seria bem longe da aridez universitária: junto das famílias, os integrantes viajariam durante as férias de verão para uma cidade paradisíaca, a fim de tomar sol, beber cerveja aguada, preparar hambúrgueres na churrasqueira e desenvolver pesquisas que mudariam o mundo. E, claro, juntar uns trocados – alguns milhares de dólares, digamos. Os resultados seriam passados ao governo na forma de aconselhamento. “Bons cientistas são bons conselheiros. Os métodos de pensamento deles eram os mais objetivos e consistentes que a humanidade já inventou”, diz a jornalista e professora da universidade Johns Hopkins Ann Finkbeiner, autora de The Jasons (sem tradução em português). Assim nasceram os Jasons.
Durante anos, ninguém fora da elite científica soube que os Jasons existiam – apesar de o grupo reunir entre os fundadores cérebros do calibre de Charles Townes e Marvin Goldberger, veteranos do Projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba atômica. O mistério começava pelo nome – “Jason” era o cachorro de Marvin. Mas também se referia ao mito de Jasão, herói da mitologia grega, e às iniciais, em inglês, dos meses julho, agosto, setembro, outubro e novembro, período em que ocorriam os encontros. Sete pesquisadores – ou um terço dos que participaram da equipe nos primeiros anos – ganhariam o Nobel no futuro.
Na primavera, a cúpula dos cientistas se reunia com os todo-poderosos do país para discutir quais assuntos seriam pesquisados no verão seguinte. O grupo tinha tratamento vip na Casa Branca – e não era para menos. Se a humanidade não foi dizimada por uma guerra nuclear, isso se deve em parte ao fato de que, em 1967, os Jasons reprovaram o uso de armas nucleares no Vietnã. Sem entrar em questões éticas, demonstraram que as maiores vítimas da hecatombe seriam as próprias bases americanas, e não as inimigas.
Nem só de guerras viviam os supercientistas. No final da década de 1970, eles selecionaram uma equipe para analisar o aquecimento global. Na época, ainda não se sabia ao certo as causas do fenômeno. A solução para a pesquisa – nada modesta – foi elaborar um modelo do mundo em miniatura, a fim de testar os efeitos da emissão de dióxido de carbono na atmosfera. Não foi suficiente para resolver o problema, porém, a partir da invenção, foi possível compreendê-lo melhor.
A ciência da guerra
O mais importante legado dos Jasons, porém, foi militar. Em 1966, por exemplo, inventaram um equipamento que mudaria as guerras até hoje. Naquele momento, o Exército americano, apoiado pelo Vietnã do Sul, sofria com a resistência dos comunistas do Norte. Técnicas tradicionais de batalha não funcionavam – a economia baseada na agricultura de subsistência era difícil de ser atingida por bombardeios aéreos. As maiores indústrias não produziam artefatos militares, que vinham todos da China e União Soviética. Após um ano e meio de conflito, o inimigo só crescia.
O governo pediu, então, a ajuda dos Jasons. A conclusão foi rápida – e unânime. Para vencer a guerra, seria necessário impedir que as tropas do Norte chegassem ao Sul e cortar o deslocamento de suprimentos de uma parte a outra. O meio mais eficiente para isso seria atacar uma longa rede de rotas e trilhas chamada de Trilhas Ho Chi Minh, por onde circulavam quase todos os recursos do adversário. A solução apontada foi levantar uma barreira invisível, que não precisasse de soldados para vigiá-la. Impossível? Não para os Jasons.
A engenhoca funcionava (e ainda funciona) assim: aviões derrubam pequenos artefatos sonoros nas trilhas. Quando uma tropa passa pelo aparelho, um sinal é disparado. Computadores analisam sua origem e avisam a força aérea sobre o local que deve ser bombardeado. “Há a possibilidade de esse ser um dos maiores avanços em artefatos militares desde a pólvora”, disse, na época, o senador Barry Goldwater. De fato, a invenção da barreira eletrônica modificou o jeito americano de fazer guerra, permitindo driblar o desconhecimento do território inimigo. Com algumas modificações, a criação foi utilizada em todas as guerras até hoje e também na fiscalização de imigrantes na fronteira com o México.
O mar de rosas dos Jasons durou até 1971, quando a imprensa publicou uma coletânea de arquivos do Pentágono relatando as principais ações dos grupo na Guerra do Vietnã. O resultado: a revolta da população contra os cérebros mais brilhantes da nação. Em Santa Bárbara, a garagem do integrante Gordon Mac Donald foi incendiada. Ken Watson viu os muros da vizinhança pichados com a expressão “criminoso de guerra”. Dick Garwin foi chamado de “assassino de bebês” num vôo, e outros tantos colegas foram expulsos de conferências científicas. O ápice do conflito se deu quando o físico Charles Schwartz, da Universidade da Califórnia, publicou o feroz artigo Ciência Contra as Pessoas – A História do Jason, em que convocava a população a pedir esclarecimentos aos colegas. “Nós temos um direito, na verdade um dever, de cobrar a responsabilidade final pelos serviços prestados aos militares”, escreveu.
Em seu documento, Schwartz apontou que a participação de cientistas em guerras não é nova. O matemático Arquimedes, por exemplo, entrou nas Guerras Púnicas para livrar Siracusa dos romanos. Contemporânea é apenas a discussão ética sobre até onde ciência e guerra devem andar de mãos dadas. É fato, porém, que uma necessariamente influencia a outra. “Os conflitos aceleram o desenvolvimento científico”, diz Shozo Motoyama, professor de história da ciência na USP. “Desde a revolução tecnocientífica, no final do século 19, esses períodos proporcionam uma oportunidade de transformar em prática o que se sabe na teoria.” O que não significa colocar a busca pelo desenvolvimento acima de tudo – afinal de contas, se a ciência existe em prol da humanidade, utilizá-la para o nosso próprio extermínio é, no mínimo, contraditório.
Todas essas questões pesaram na decisão de William Happer – o jovem físico do início da reportagem – quando ele decidiu juntar-se aos Jasons. Após ter sido quase linchado, ele concluiu: “Com tantos inimigos desprezíveis, eles certamente devem ser muito bons”. Se para o bem ou para mal, já é outra questão.
Como diz uma das principais regras da ciência, para acertar é necessário errar muito. Pois logo no primeiro estudo, os Jasons pisaram na bola. A missão era desenvolver uma barreira antimíssil para proteger os EUA da ameaça comunista. Por algum tempo, cogitou-se uma solução de fazer inveja a George Lucas: destruir as armas inimigas com laser. Isso em 1963! A idéia obviamente fracassou.
A medalha de ouro na categoria “cientista louco”, porém, vai para o greco-americano Nicholas Christofilos. Um dos primeiros a se juntar aos Jasons, ele não era um professor acadêmico, mas proprietário de uma firma para manutenção de elevadores. Leitor de publicações científicas, ele enviou uma idéia genial por correio e foi convidado a se juntar aos cérebros do grupo.
Para solucionar o problema da barreira antimíssil, ele deu uma sugestão de fazer inveja aos melhores roteiristas de ficção científica: criar uma enorme nuvem de elétrons presa ao campo magnético da Terra que fritaria qualquer corpo que por ela passasse. A idéia foi levada a cabo e, por incrível que pareça, deu certo. Só que, em vez de destruir armas, atingiu alguns satélites em órbita – e o projeto foi sepultado.
Outro projeto de Christofilos tinha por objetivo melhorar a comunicação com submarinos. A proposta: transformar os estados de Wisconsin e Minnesota – e talvez metade do Canadá – na maior antena já imaginada. Essa nem saiu do papel. O cientista só deixou as maluquices quando morreu, em 1972.
Um dos últimos fracassos dos Jasons foi no atentado do 11 de Setembro ao WTC. Mas certamente não por culpa deles – eles bem que tentaram avisar, mas, segundo a jornalista Ann Finkbeiner, o governo Bush não é lá muito chegado em dar ouvidos a palpites de cientistas. Por esse motivo, o grupo, que existe até hoje, anda em baixa. Quem sabe com o próximo presidente...
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