
Como se recorda, a primeira reação do governo à revelação documentada de que fabricava o que pretendia que parecesse um rol de roupa suja da gestão Fernando Henrique nesse mesmo departamento - para tirar o gás das demandas da oposição - foi a de querer tapar o sol com peneira, negando tudo. Fracassada a bisonha tentativa, os planaltinos mudaram o disco: havia, sim, em preparo, uma base de dados para atender a uma exigência do Tribunal de Contas da União (TCU), o que o órgão mais do que depressa tratou de desmentir. Diante disso, brotou a versão de que o material - extraído do arquivo morto do Palácio - se destinaria a atender a uma eventual requisição da CPI dos Cartões (que nem sequer tinha sido criada quando uma força-tarefa de servidores públicos, instalada na Casa Civil da ministra Dilma Rousseff, deu início ao arrolamento).
Quando, mais adiante, com notória relutância, o lulismo consentiu em que a Polícia Federal investigasse o vazamento - mas só o vazamento! - do que seria, conforme as novas alegações da ministra Dilma, uma contrafação da tal base de dados, o seu colega da Justiça, Tarso Genro, receoso dos possíveis desdobramentos do inquérito, se pôs a desconstruir o dossiê. Tortuosamente, deu a entender que o que se aprontou na Casa Civil poderia ser, de fato, um dossiê - mas que mal haveria nisso? "Todo governo tem o direito de coletar dados e compará-los com os de governos anteriores para mostrar a lisura de seu comportamento", enrolou. Foi além: lançou a teoria de que fazer dossiês é uma atividade não só legítima, como franqueada a todos, "governo, oposição e imprensa". Também para essa finalidade, portanto, serviria o dinheiro público.
Mas a desconstrução não parou por aí. Colhido pela advertência, originária da própria Polícia Federal, de que a manipulação da papelada do governo Fernando Henrique ignorou o Decreto nº 4.553 sobre a "salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da administração pública", o ministro se saiu com essa: o que se pagou, e onde, para fornir as despensas do ex-presidente já não interessa à segurança do Estado; o sigilo só deve recobrir os gastos do governante de turno. Isso porque, à diferença do antecessor, ele, sim, corre o risco de ser alvo, por exemplo, de uma tentativa de envenenamento por um demente ou um terrorista que saiba de que açougue saem os bifes consumidos nos palácios presidenciais.
O corolário da teoria tarsiana é que, não havendo sigilo, não houve crime - no máximo, uma "infração administrativa". E a história do vazamento se esvairia num "debate parlamentar entre oposição e governo, e não uma questão relacionada com a jurisdição penal". Ao que tudo indica, porém, a Polícia Federal discorda. O que vale para Lula, sustentam investigadores ouvidos pelo Estado, vale para Fernando Henrique. Afinal, o exame da rotina de gastos do ex-presidente indicaria um padrão ainda seguido pela segurança do Planalto. Em português claro, e simplificando esse tema de alta indagação para os destinos do País, o açougue é o mesmo.
Em suma, foi para isso que se buscou chamar a atenção quando, na abertura deste comentário, se assinalou a imensa distância entre a agenda do presente debate político nacional e aquilo que efetivamente interessa na ordem das coisas.

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