sábado, 21 de junho de 2008

Opinião do Estadão: A aberração dos precatórios

Muitos não se dão conta de que a própria existência dos chamados "precatórios" é uma aberração ético-jurídica. Se é o Estado que estabelece e garante a tutela jurisdicional que protege todos os cidadãos de uma sociedade, "dando a cada um o que é seu" por meio de decisão coercitiva de um de seus Poderes - o Judiciário -, como explicar que este mesmo Estado, por outro de seus Poderes - o Executivo -, despreze sistematicamente os direitos alheios, não pagando o que deve aos cidadãos mesmo se condenado, judicialmente, a fazê-lo? Na origem etimológica da palavra - que vem do precatoriu latino - já está o desequilíbrio descabido da relação Estado/Cidadãos, visto que o termo significa um "pedido" do cidadão à autoridade. Ora, por que pedir - e não cobrar - aquilo a que se tem direito por decisão da Justiça?

Se somadas, as dívidas que os Estados e municípios têm com os cidadãos - em precatórios - chegam à enormidade de R$ 100 bilhões. Só por esse motivo, se se comprovar a previsão do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), segundo a qual os entes da Federação em atraso quitarão seus débitos em 15 anos, com as novas regras para pagamento de precatórios aprovadas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, tais mudanças já se justificam. Há que se examinar, no entanto, aquilo que parece positivo e o que - pelo menos à primeira vista - parece um tanto esquisito no novo projeto.

Pelas novas regras, os entes devedores ficam obrigados a reservar parte da receita corrente líquida para pagar precatórios. Os Estados vincularão de 0,6% a 2% da receita, e os municípios, de 0,6% a 1,5%. Quem aderir ao novo sistema não estará mais sujeito ao seqüestro de suas receitas. Este ponto do projeto é, sem dúvida, positivo, primeiro, porque fará os administradores públicos organizarem melhor seus orçamentos, tendo em vista um respeito maior a seus credores. Segundo, porque a medida judicial de seqüestro de receita na prática não tem funcionado. Um juiz determina um bloqueio e outro logo o libera (os entes públicos são fortes!). Pedidos de intervenção federal no ente inadimplente também têm sido sistematicamente negados pelo STF.

Pelo projeto, 50% dos precatórios serão destinados a leilão, onde os credores poderão receber o pagamento com deságios que podem chegar a 80% do total devido. Em relação à outra metade, 30% serão pagos na ordem crescente do menor para o maior valor e 20% seguirão a ordem cronológica. Credores acima de 60 anos terão prioridade. Sobre estes pontos, o que nos ocorre, primeiro, é que o desconto de 80% de uma dívida significa valorizar os direitos e bens dos cidadãos com os critérios da bacia das almas. Já o critério do pagamento na ordem crescente, do menor para o maior valor, parece razoável no sentido de "fazer andar a fila": às vezes o pagamento de um só precatório, de grande valor, impossibilita o atendimento de um sem-número de pequenos e necessitados credores.

Certamente há muitas - e justas - reações de entidades de credores às mudanças legais na área, que ainda dependem de votação em dois turnos no Senado, antes de seguir para a Câmara dos Deputados. O presidente do Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares (Madeca), por exemplo, afirma que "as mudanças favorecem governadores e prefeitos, que têm força política, mas não os credores".

Sobre os leilões, é de registrar a crítica do presidente da OAB: "Significa que se pode leiloar o Judiciário. Não se podem flexibilizar as sentenças judiciais." Haverá exagero nestas palavras?

Ótimo seria, é claro, que os entes devedores simplesmente pagassem suas dívidas aos cidadãos, sem necessidade de "pedidos" (precatórios), leilões, deságios ou o que mais possa embaraçar o sagrado dever jurisdicional de "dar a cada um o que é seu". Infelizmente, a realidade administrativa brasileira está bem longe disso. Então, há que, pelo menos, minorar o colapso do atual sistema de pagamento de dívidas dos entes públicos - ou seja, salvar alguma coisa dos direitos e bens dos cidadãos, em sua desequilibradíssima relação com o Estado.
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