Fábio Ulhoa CoelhoA falência nem sempre é um mal. Se a empresa não está devidamente estruturada para enfrentar a competição e a reestruturação depende de investimentos que provavelmente não terão retorno, a melhor solução para a economia é a decretação da falência e o reaproveitamento dos seus recursos comerciais, materiais e humanos em outra atividade mais útil a todos. Assim é, mesmo que a empresa em dificuldades seja das mais tradicionais e queridas.
Quando não há uma ''solução de mercado'' - isto é, quando não surge nenhum investidor considerando a aquisição e o saneamento da empresa em crise uma consistente alternativa de lucro -, a falência deve ser decretada, porque isso atende melhor aos interesses da economia e da sociedade. Qualquer forma de recuperação fora da lógica do mercado (por exemplo, a estatização ou mesmo a reestruturação forçada do passivo) tem o custo suportado, direta ou indiretamente, por todos nós.
A recuperação das empresas por decisão judicial deve caber, por esta razão, apenas nas hipóteses em que a idiossincrasia do dono impede a solução de mercado. Isto é, o dono da empresa em dificuldades (controlador) atribui-lhe um valor com o qual ninguém mais concorda. Em tese, haveria interessados em adquiri-la para fazer os investimentos necessários à recuperação, mas nenhum deles se dispõe a pagar o preço imaginado pelo controlador. Neste caso, para evitar que a idiossincrasia do dono acabe por levar ao fim uma organização empresarial viável, a lei possibilita a intervenção do Estado, por meio do Poder Judiciário, para que a solução de mercado tenha a sua oportunidade.
A lei de recuperação judicial das empresas em dificuldades é de 2005 e foi feita para casos como o da Varig. Seu dono era uma fundação controlada pelos próprios empregados da empresa. Nenhuma solução de mercado vingava porque os potenciais investidores não identificavam outra forma de reerguer o negócio senão mediante corte de pessoal e eliminação dos muitos privilégios concedidos aos seus trabalhadores. Não prosperava nenhuma proposta de recuperação porque tais medidas se chocavam com os interesses corporativos da fundação controladora.
Aliás, quando o Poder Judiciário afastou a fundação do controle da Varig, em dezembro de 2005, reavivou a esperança num desfecho favorável do caso. Foi, porém, uma decisão tardia.
No primeiro leilão, em junho de 2006, não surgiu a solução de mercado. Em meio a um espetáculo nunca antes visto num ato judicial, com direito a avião taxiando com a Bandeira Nacional a tremular da janela da cabine (evocando momento célebre do nosso entusiasmado patriotismo futebolístico), hino e discursos, o único lance apresentado era frágil. Parecia tratar-se de arranjo destinado, apenas, a evitar o completo fracasso do leilão. O Estado, então, empenhou-se na ''salvação'' da Varig (continuar a falar em ''recuperação'' depois daquilo tudo passou a ser, tecnicamente, inapropriado). Empenhou-se tanto no âmbito do Poder Judiciário como - sabe-se agora - do Executivo federal.
A razão de nenhum dos empresários habilitados no primeiro leilão ter apresentado qualquer lance é fácil de entender. Não havia, como ainda não há, segurança jurídica na questão da sucessão. No Direito brasileiro, pela regra geral, o adquirente de qualquer empresa assume as dívidas desta. Há uma exceção à regra geral: quem adquire, em leilão judicial, uma das ''unidades produtivas autônomas'' de empresa em recuperação não fica responsável pelas dívidas da unidade adquirida.
No caso da Varig, criou-se uma unidade produtiva artificial, que não existia autonomamente antes do leilão. Desse modo, há sérias dúvidas se seria aplicável a exceção da lei, que ressalva a sucessão somente no caso de venda de unidades produtivas autônomas (filiais, subsidiárias, estabelecimentos isolados, etc.), e não da empresa como um todo. A artificialidade da unidade posta à venda é um grave obstáculo à aplicação da exceção legal, expondo o adquirente ao sério risco de ser considerado sucessor. Jogou-se um jogo de faz-de-conta: todos agiam como se estivesse sendo leiloado apenas uma parte da Varig, e não ela inteira.
No segundo leilão, pouco mais de um mês depois do primeiro, o único lance foi apresentado pela VarigLog, antiga subsidiária da Varig, então sobre o controle de um fundo estrangeiro. O Código Brasileiro de Aeronáutica obriga a que o controle de empresas de aviação seja de brasileiros. Aqui, jogou-se novo jogo de faz-de-conta: não houve investigação da origem dos recursos formalmente aportados pelos sócios brasileiros para evitar o aparecimento de eventual desobediência à exigência legal.
O criticável, no caso Varig, foi a demasia da intervenção do Estado na recuperação de uma empresa privada. Tanto no âmbito do Poder Judiciário como no do Executivo, o empenho na ''salvação'' da viciada companhia de aviação rio-grandense foi além do recomendável. A sobrevivência de qualquer empresa privada deve decorrer unicamente de sua capacidade de se sair melhor do que a concorrência. A intervenção do Estado para resgatar da derrocada qualquer empreendimento particular deve ser sempre excepcional. Nesta hora, nenhum ''jogo de faz-de-conta que a lei é um pouco diferente'' contribui para o fortalecimento de nossa economia.
É certo que, se o Estado não se tivesse excedido, seria muito difícil - creio que impossível mesmo - para a Varig escapar da falência. Mas a falência de uma empresa nem sempre é um mal. Quando a recuperação não aparece como solução de mercado, nem mesmo depois de acionado o mecanismo judicial destinado a facilitá-la, a decretação da falência não deve ser postergada. Nenhuma empresa privada é tão importante a ponto de merecer ser recuperada a qualquer custo.
Fábio Ulhoa Coelho, jurista, é professor da PUC-SP
Opinião no Estadão: A Varig de faz-de-conta
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