terça-feira, 1 de julho de 2008

Opinião no Estadão: ''Generosidade'' versus liberdade

Ilan Goldfajn

A preocupação de curto prazo é a inflação, sem dúvida. Mas o risco maior para o crescimento no médio e no longo prazos se situa numa outra esfera. Melhor explicar com frases que ilustram o ponto. O ministro das Minas e Energia afirmou que ''não se cogita absolutamente de mudar os contratos existentes. Estamos sendo absolutamente generosos'' e, ''na medida em que as empresas apenas estejam auferindo lucros em demasia, deveremos rever essa situação, em benefício de todos'' (Valor Econômico, 27/6). Comentava sobre os ''contratos'' de exploração de petróleo e o desejo do governo de criar mais uma estatal para a nossa vasta coleção. Os ''lucros em demasia'' a serem revertidos são no setor de mineração. O ministro reflete um conflito que transcende a sua área de atuação: os contratos assinados viraram um incômodo e o respeito a eles passou a ser visto como uma generosidade dos atuais dirigentes. A construção institucional feita no passado - respeito a contratos, regulação via agências do Estado e menos intervencionismo - mede forças contra o desejo atual de controlar, dirigir, estatizar.

Há vários exemplos de mudança de direção, como o desmonte do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - publicações canceladas, funcionários dispensados - e a discussão dos portos - querem licitar portos, mesmo que, absolutamente, privados e já regulados. O cerne do debate sobre o crescimento futuro vai se concentrar neste ponto: haverá liberdade e facilidade para produzir, investir, arriscar e gerar valor no Brasil?

Na discussão macroeconômica, fala-se em claro e bom som da necessidade de resolver os gargalos da economia (ou seja, desobstruir os impedimentos à elevação da produção no médio prazo), de aumentar a oferta disponível, para não ter de desacelerar a demanda, e de incentivar as exportações. No dia-a-dia, a clareza macroeconômica cede lugar a uma combinação cinzenta de ideologias e interesses.

A discussão dos portos é emblemática. Há um visível esgotamento da capacidade portuária no Brasil com o bem-vindo aumento do comércio exterior. Mas existem limites orçamentários para aumentar os investimentos públicos no setor. Como em outras áreas, o progresso vai depender da capacidade de atrair para o setor capitais privados que estejam dispostos a correr o risco do investimento em troca da expectativa de um retorno futuro. O governo tem de ser capaz apenas de mostrar estabilidade macroeconômica e regulatória (manter as regras que ele mesmo estabeleceu) e reduzir os entraves burocráticos a novos investimentos. Mas não é isso o que acontece.

Há interferência na decisão econômica, que deveria ser dos que atuam no setor. Não me refiro aqui à regulação necessária na economia. Afinal, há bens públicos a defender, como o meio ambiente ou o combate à barreira a entradas de novos concorrentes para evitar a formação de cartéis e monopólios. Isso já existe com as diversas agências reguladoras montadas no passado (e sendo enfraquecidas desde então). Nesse caso dos portos, interfere-se arbitrando que a existência de portos estritamente privados tenha de ser justificada apenas com sua carga própria, mesmo que o porto venha também a ser utilizado por terceiros, o que reduziria os custos operacionais pelos ganhos de escala. Ou seja, coloca-se um entrave, cujo custo é claro (retrai investimentos) e o benefício coletivo, duvidoso (qual é o ganho para o cidadão?). Os portos públicos encontram-se também prejudicados pela arbitrariedade das regras e ineficiência do setor público (há custos altos e monopólios sindicais criados pelo governo). Mas isso não é razão para impedir o progresso dos portos privados, mas sim demandar mudanças nas regras ineficientes do governo.

O irônico é que no momento em que a realidade impera e se sinaliza que se ''aceita'' remover esse obstáculo (afinal, quem não quer mais investimentos?), a ideologia e o desejo de controle imperam, e o governo anuncia que, como contrapartida, pretende requisitar plano de outorgas e licitar todos os novos portos, mesmo os privados. Ou seja, se alguém quer investir em portos, vai caber ao governo decidir se é viável e/ou desejável. Por trás dessa iniciativa está um conflito comum hoje no governo: o desejo da nova Secretaria Especial de Portos (criada para acomodar conflitos políticos) de dirigir e decidir sobre o setor para além da regulação exercida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Essa nova exigência de planos de outorga e licitação deve atrasar e/ou desestimular os novos investimentos. Enquanto isso, continuaremos a debater em público, em abstrato, sobre os gargalos da economia e por que o Brasil não consegue crescer mais, sem gerar inflação.

O Ipea e o Indec - Se a sociedade não tomar cuidado, o Ipea vai-se converter no nosso Instituto Nacional de Estadísticas y Censos (Indec)). O Indec, o ''IBGE argentino'', encontra-se num estado de profunda perda de credibilidade, cujas conseqüências vão além do atual governo dos Kirchners. Ao longo dos últimos anos, o governo argentino foi intervindo, censurando suas publicações, demitindo funcionários que se recusaram a seguir as diretrizes governamentais e divulgando estatísticas falsas com o intuito de mostrar uma situação mais favorável ao governo. Por exemplo, a inflação oficial publicada é de ''apenas'' 9,1%, nos últimos 12 meses, enquanto a verdadeira ronda os 30%. A conseqüência é a desconfiança nas instituições e nos números da economia, o que prejudica não só a economia (quem vai investir numa economia baseada em números falsos?), mas a própria democracia. A direção do Ipea, depois de dispensar funcionários competentes por divergências ideológicas, recentemente cancelou a publicação do seu boletim trimestral. Alega que quer concentrar-se nas questões de longo prazo, mas insiste em tecer comentários sobre a taxa de juros de curto prazo no Brasil: comportamento típico do atual Indec.

Ilan Goldfajn, sócio-diretor da Ciano Investimentos, diretor do Iepe da Casa das Garças, é professor da PUC-Rio.
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