sábado, 29 de março de 2008

Opinião: Sensação de roubado

Mauro Chaves

Os que acham que se está fazendo muita celeuma em torno dos cartões corporativos, que existem problemas muito mais importantes a serem resolvidos no País do que a briga de oposicionistas com governistas na CPI dos Cartões, que se exagera nas acusações de chantagem por meio de sórdidos dossiês de novos aloprados, ou que é simples mesquinharia a insistente cobrança da quebra de sigilo dos gastos presidenciais, com certeza ainda não descobriram a "sensação de roubado" que acomete o povo brasileiro, depois de se ver tão afanado por agentes do Estado. As vítimas de roubo costumam sofrer uma auto-avaliação de incompetência, negligência e impotência, sentindo-se culpadas por não terem sabido proteger o próprio patrimônio. Bem, em se tratando do eleitorado, essa culpa às vezes se justifica plenamente. Mas o importante é perceber que a "sensação de roubado" rebaixa a auto-estima, que tanto se pretende elevar no povo brasileiro.

O eminente tributarista Renato Ferrari já sintetizou (em seu livro Em Busca da Paz Tributária, pág. 58) o ponto mais sensível da relação Estado-cidadãos, nestes termos: "O Estado, sendo um meio e não um fim, deve servir ao homem e à sociedade e não servir-se deles; e sendo o Estado um ente abstrato, servir-se deles significa dizer o proveito pessoal, pelos agentes públicos, da sua condição de componentes e representantes do Estado, no plano concreto".

Realmente, a sociedade brasileira se sente cada vez mais indignada com o "proveito pessoal", por parte dos que compõem os quadros de gestores públicos de todas as esferas - especialmente as mais altas -, dos recursos, extraídos pelo Estado, do esforço de trabalho dos cidadãos contribuintes. Ela não se conforma - para dar exemplo que se tornou bem emblemático - quando o presidente de uma entidade de fomento científico, que desviou dinheiro público da ciência para a decoração de luxo do apartamento de um servidor (o já famoso reitor do saca-rolhas de R$ 859), apenas reconhece, candidamente, que "o dinheiro poderia ter sido mais bem empregado" - e fica tudo por isso mesmo.

Será inacreditável e inteiramente desmoralizante, tanto para o governo Lula como para a revista mais importante do País, se "ficar tudo por isso mesmo" depois que a Veja publicou a contundente reportagem dando conta do criminoso dossiê chantagista confeccionado dentro do Planalto e os ministros de Estado disseram tratar-se de deslavada mentira dessa publicação. Aí o confronto de verdades é inconciliável: não dá para escapar da evidência de que uma das duas partes mente, criminosamente. Mas nem isso é mais importante, como fator indispensável de credibilidade das instituições, junto à sociedade brasileira, do que a total transparência dos gastos dos presidentes da República e suas respectivas famílias.

Tenha sido ou não um golpe de esperteza política a carta de Fernando Henrique Cardoso autorizando a quebra de seu sigilo e do de sua família ao tempo de seus dois mandatos de presidente da República - carta essa solicitada pelo líder tucano no Senado, Arthur Virgílio (AM) -, com isso fez ele tabula rasa de quaisquer argumentos contrários à quebra de sigilo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de sua família. Disse FHC que a CPI dos Cartões deve tomar conhecimento das contas tanto do seu quanto do atual governo, por este motivo: "É a única maneira de ambos os governos se livrarem de suspeitas que, no meu caso, são infundadas e espero que também o sejam no caso do atual governo." Como contestar essas palavras?

O fato de os senadores e deputados da base governista na Comissão Mista dos Cartões Corporativos se aproveitarem de sua folgada maioria para impedir a aprovação dos requerimentos de quebra de sigilo do presidente Lula, de sua família e auxiliares mais próximos só pode multiplicar até volume imprevisível o peso das suspeitas de malversação de recursos públicos, por parte da casa presidencial. Não tem jeito de revogar, por medida provisória, a lei ética fundamental que reza: quem não deve não teme (e quem teme muito deve muito). Nos últimos quatro anos foram gastos pelo governo federal, sigilosamente, por meio de cartões corporativos, R$ 98,7 milhões. Quanto dessa dinheirama terá sido utilizada por quem? A esta altura, a justificativa de razão de "segurança nacional" para manter o sigilo dos gastos de dinheiro público, seja em benefício de quem for, já se tornou inteiramente desmoralizada.

Agride o bom senso - de pessoas que não pertençam a territórios de sobas ou a repúblicas de bananas - que se deva manter segredo sobre o destino do dinheiro público gasto nas casas dos governantes. Por outro lado, não é imaginável que Lula, dona Marisa e seus filhos, apesar de se terem permitido usufruir algumas amenidades festivas - como as festas de São João a caráter, o "tradicional" arraiá do Torto -, tenham participado de esbórnias esbanjadoras de dinheiro público. Por que, então, tanto medo de mostrar as contas privadas presidenciais? E será que a comparação do jeito de gastar dinheiro de dona Ruth Cardoso com o de dona Marisa Letícia não serviria para traçar normas e criar sistemas mais aperfeiçoados de administração doméstica presidencial, para melhor orientação de futuros presidentes, primeiras-damas, primeiros-filhos, primeiros-genros, primeiras-noras e respectivos auxiliares?

Com toda a certeza, o presidente Lula e seus familiares farão questão de imitar o ex-presidente FHC e autorizar a quebra de seus sigilos. E o mesmo farão Sarney, Collor e Itamar (os demais ex-presidentes sobreviventes), que também não se furtarão a prestar à sociedade brasileira esse inestimável serviço, a bem da moralidade pública nacional.

Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. Estadão
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