quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Opinião no Estadão: Pirotecnia terceiro-mundista

O Mercosul é, em tese, um projeto saudável. Sua rota, do curto ao longo prazo (livre comércio/integração infra-estrutural-união aduaneira e, num futuro por ora utópico, algum grau de associação similar à União Européia), está sendo tumultuada, mas seus tropeços internos e nas posições em negociações abrangentes são suscetíveis de acomodação, embora nem sempre fáceis. Entretanto, esse otimismo, realisticamente moderado, correrá risco caso seja ratificado o ingresso pleno da Venezuela na organização, com os direitos dos sócios fundadores. Na verdade, o risco não decorre propriamente do país Venezuela, de potencial promissor em princípio bem-vindo, mas do regime que o controla. Por que isso?

A Venezuela está vivendo uma situação singular, caracterizada pela visão messiânico-salvacionista de sua política bolivariana ou socialista do século 21- uma versão de nacionalismo populista-distributivista permeada por nuanças de democracia delegativa e limitada: Congresso submisso, politização do Judiciário, restrições à liberdade de imprensa, eleição popular do líder que, entendido como intérprete e representante do povo, personaliza o Estado. Permeada pelo clientelismo e assistencialismo cevados na receita do petróleo e - característica dos regimes dessa natureza - pela hostilidade a um bode expiatório culpado de tudo: o "império", protagonizado pelos EUA. Finalmente, como todo ideário messiânico-salvacionista, também sua versão bolivariana precisa expandir-se, tornar-se supranacional, como pretendia Trotski para o comunismo soviético, criar satélites e neles exercer influência, a exemplo da situação evidenciada na Bolívia hoje.

Nesse quadro dinâmico - novamente, à sombra da receita do petróleo, em grande parte resultante da sua venda ao "império" -, o presidente Hugo Chávez procura criar e liderar um (neo)terceiro-mundismo anacrônico, que cultua a luta de classes entre países mais e menos desenvolvidos, mobiliza psicopoliticamente o povo e ajuda a anestesiar problemas internos. Agora mais centrado na América do Sul, já que os países relevantes do velho terceiro-mundismo do tempo da guerra fria, em particular os asiáticos, estão preferindo se aproximar do Primeiro Mundo, ou até mesmo nele entrar, a se opor a ele (é o caso da Índia), com o presidente Chávez tentando cooptar a simpatia russa, usando para isso sua condição de grande comprador de material bélico russo que, na retórica bolivariana, destinar-se-ia à defesa contra o "império". O programado exercício naval conjunto Venezuela-Rússia no Caribe é parte desse enredo psicodélico: vazio sob a perspectiva estratégica, mas útil ao teatro venezuelano anti-EUA, que a Rússia vê com discreta satisfação...

Num regime assim caracterizado é natural a tendência à politização viciosa da economia, é natural que a conveniência econômica seja influenciada por parâmetros da sua política redentora, entendidos como legitimados pelo ideário salvacionista. Nessas circunstâncias, e dadas as regras do Mercosul, já rotineiramente problemáticas (igualitarismo e consenso), uma vez ratificado o ingresso pleno da Venezuela, muito provavelmente as negociações internas e as do Mercosul com outros países ou organizações supranacionais estarão um tanto reféns das perspectivas políticas do redentorismo (neo)terceiro-mundismo venezuelano (mais propriamente "chavista"), mesmo que em detrimento da lógica econômica. O avanço do Mercosul poderá vir a ser cerceado não só por divergências internas, de solução complicada, mas viável, e mais pela pressão das idiossincrasias petromilagrosas do socialismo do século 21, a que o ingresso pleno terá dado condições de tumultuar a vida da organização. Em razão da sua condição de maior economia, naturalmente interessado na integração supra-regional, conveniente à sua ascensão no quadro global, o Brasil é candidato a ser particularmente atingido.

Na sua decisão sobre a ratificação do ingresso da Venezuela, nosso Congresso deve pensar a respeito: é aceitável para o Brasil, o país de maior peso na organização, sujeitar sua conveniência sensatamente avaliada e a de seus sócios originais às perspectivas redentoras do socialismo bolivariano do século 21? É aceitável para o Brasil (e para os demais sócios originais) admitir que tais perspectivas ameacem o avanço orgânico do Mercosul e de seu relacionamento com o mundo desenvolvido, onde realça o "império" satanizado? Os ganhos econômicos, que provavelmente existirão, do ingresso pleno da Venezuela no Mercosul compensarão os também prováveis embaraços que advirão do condicionamento da organização ao tempero da ideologia visionária do socialismo bolivariano do século 21? Enfim, compartilhar soberania e regras por força da racionalidade econômica é diferente de compartilhá-las por força de posições políticas visionárias. Cabe, portanto, a dúvida: convém-nos mais ratificar o ingresso ou a cautela coerente com a condição do Brasil de país que, em vez de ser parte de uma política "antiimpério", tem condições para se aproximar do Primeiro Mundo, até de ingressar nele? É melhor para o Brasil a pirotecnia ou o pragmatismo que promova seu progresso?

Se já temos tido problemas com a Argentina no tocante às posições de natureza econômica no campo interno (mercado comum, união aduaneira) e nas complicadas negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), imaginemos quão mais difíceis serão eles, internamente e em negociações do Mercosul com outras organizações ou países, quando as posições comuns do bloco em temas econômicos passarem a ser influenciadas por humores políticos que tendem a pôr a América Latina em confronto com o mundo mais desenvolvido. O Mercosul - o atual e o cautelosamente ampliado - ver-se-á bloqueado já em seus passos hoje possíveis, no longo caminho para algo que o aproximasse algum dia do que é hoje a União Européia.

Mário Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)


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