terça-feira, 30 de setembro de 2008

Opinião do Estadão: A nova Carta equatoriana

Numa votação limpa, certificada por observadores internacionais, o eleitorado equatoriano deu domingo ao presidente Rafael Correa uma inequívoca vitória ao ratificar por maioria de 2/3 o projeto de Constituição aprovado em julho, que ele considera o marco da "refundação do Equador". É um país pródigo em feitos do gênero. Desde a sua fundação, em 1830, acumula 20 Cartas promulgadas - a última em 1998 -, o que o torna, quem sabe, a nação mais constitucionalizada do mundo. Nem por isso avançou em matéria de estabilidade política, mesmo pelos padrões dessa região secularmente deficitária no quesito: nenhum dos três predecessores imediatos de Correa, todos eleitos pelo voto popular, conseguiu cumprir o mandato. A menção se justifica porque é incerto, em princípio, que essa 20ª Constituição, com 444 artigos e 30 disposições transitórias, pretendendo abarcar detalhadamente a vida econômica, política e social do país, seja funcional a ponto de sobreviver além da média histórica de 8,4 anos das anteriores.

De todo modo, conta a favor de sua eventual longevidade o fato de ser muito mais branda, portanto menos divisiva, do que aquelas em que a iniciativa de confeccioná-la se baseou - a da Venezuela de Hugo Chávez e a da Bolívia de Evo Morales, governos com os quais o de Correa se irmana no projeto bolivariano. É certo que a Carta equatoriana concentra inquietante massa de poderes no Executivo. Mas, apesar do seu caráter centralizador, não pode ser confundida nem com a primeira, que, além de liberticida, permitiria a Chávez tornar-se ditador vitalício, não tivesse sido o golpe repudiado no referendo de dezembro último, nem com a segunda, mediante a qual Morales simplesmente quis pôr abaixo as instituições nacionais, em nome do resgate das tradições nativas de autogoverno. (A nova Constituição do Equador atende às demandas dos grupos indígenas, concedendo-lhes alguma medida de autodeterminação e promove o quéchua e o shuar a "idiomas oficiais de relação intercultural", mantida a primazia do castelhano.)

A derrotada oposição a Correa enfatiza o que entende serem as semelhanças da Carta com a legislação chavista. O texto equatoriano autoriza o presidente - que poderá se reeleger uma vez, sujeito sempre a referendo revogatório do mandato - a dissolver o Congresso, desde que com aval do Judiciário. Mas o Congresso também poderá destituir o presidente. Só que a Constituição abre brechas para o Executivo, no processo de transição institucional, usar a sua hegemonia política a fim de orientar a composição futura do Tribunal Supremo de Justiça. Vinte e um dos seus membros serão escolhidos pelo Congresso que resultar das eleições gerais, talvez em janeiro próximo (às quais Correa concorrerá). É de prever que o partido do presidente, a Aliança País, mantenha a maioria obtida na votação que o guindou ao poder. Os oposicionistas também ressaltam que a nova ordem amplia a interferência do presidente também nos órgãos de controladoria do país e nas agências reguladoras de serviços públicos.

A Carta estabelece o monopólio estatal sobre a atividade em setores considerados estratégicos. Note-se, porém, que o setor privado poderá participar da exploração de recursos naturais, se essa participação for vantajosa para o Estado. De resto, o predomínio estatal nesses setores ocorre igualmente nas economias de mercado. E, de qualquer forma, apesar da introdução de tipos de propriedade preconizados pelo bolivarianismo, a livre iniciativa não é varrida do Equador. Terras poderão ser desapropriadas; empresas, nacionalizadas, mediante justa indenização - mas o confisco está expressamente proibido, limitando o intervencionismo do Estado. A Constituição consagra a precedência do interesse coletivo, mas com um contrapeso significativo: esse princípio deixará de valer quando a sua aplicação "vulnerar ou ameaçar vulnerar direitos constitucionais".

A Carta, em suma, não é autoritária de nascença. O problema é o uso distorcido que dela possa fazer o presidente Correa, se se deixar levar pelas emanações do chavismo. Os ares bolivarianos são notoriamente favoráveis a surtos autoritários.


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