Pedro Malan
Um amigo bem-humorado comentou de passagem que o presidente Lula havia criticado fortemente todos os responsáveis pela política econômica "deste país" nos 20 anos que se lhe antecederam. No exterior, ocupado com outras coisas, considerei o fato apenas mais uma das incontáveis manifestações do "nunca antes jamais na história", hoje definitivamente incorporado ao anedotário político do País. Nonada.
Mas, aparentemente, o que era uma pessoal marca registrada, patenteada pelo presidente Lula, está assumindo - e não apenas nos palanques - foros de um discurso oficial de uso mais amplamente disseminado. E assumindo novas vertentes. Por exemplo, a ministra-chefe da Casa Civil, a nova "capitã do time", em discurso proferido na bela cerimônia comemorativa dos 40 anos da revista Veja, dez dias atrás, insistiu no fato de que o futuro do Brasil já chegou - e que este futuro começou com o governo Lula. As expressões "só agora", "estamos começando" e "vamos começar" foram recorrentes - num discurso de dez minutos de duração.
É extremamente desejável que discursos políticos estejam voltados para o futuro. Mas o fato é que a capacidade de avaliar - e de responder a - riscos, desafios, incertezas e oportunidades (que o futuro sempre encerra) depende, em boa medida, da qualidade de nosso entendimento sobre os processos pelos quais chegamos ao sempre fugidio momento presente. É nesse sentido que a história é, e sempre será, um infindável diálogo entre passado e futuro. Algo que a litania do "nunca antes" procura, consciente ou inconscientemente, considerar irrelevante ou relegar ao mais simples de seus significados.
A propósito, cabe mencionar a meritória iniciativa do governo de comemorar, nesta última semana, os 200 anos de existência do Ministério da Fazenda (1808-2008) com a realização de um evento em Brasília para o qual foram convidados todos os ex-ministros da pasta ainda vivos. Não para um simples encontro social, mas para que cada um desse um depoimento franco sobre os principais desafios que teve de enfrentar em sua gestão. Algo civilizado. Um reconhecimento de que houve um "antes": épocas em que o passado, hoje conhecido, ainda era um incerto futuro. Uma homenagem aos que aceitaram as responsabilidades do cargo, no qual procuraram servir ao País.
Pois bem, de volta do exterior, apenas no meio da semana tive oportunidade de ver matéria intitulada Lula chama antecessores na economia de criminosos, que reproduz trechos do "discurso" presidencial proferido em Ipojuca (PE) para um público de metalúrgicos. Bem sei que em palanques, com audiências cativas, políticos tendem a se deixar levar por emoções, por arroubos retóricos e pelo calor da hora. Mas o presidente disse, textualmente, que um indivíduo preso porque cometeu um delito "é menos criminoso do que aqueles que foram responsáveis pela política econômica e pela política de desenvolvimento deste país nos últimos 20 anos" (Folha de S.Paulo, 6/9).
Esta é uma nova vertente do "nunca antes". Agora não é apenas o passado em geral que se procura acusar. Agora são pessoas que têm nome e biografia conhecidos que são tachadas de criminosas com insensata ligeireza. Como dizem os cariocas, "menos presidente, menos". Afinal, os "últimos 20 anos" incluem os governos de cinco ex-presidentes e daqueles que lhes serviram - e ao País - como "responsáveis pela execução da política econômica e da política de desenvolvimento". Se considerarmos todos os ex-ministros da Fazenda e do Planejamento (e presidentes do Banco Central), estamos falando de várias dezenas de pessoas. Todos "criminosos", presidente?
Tenho certeza que nosso presidente, no fundo, não acha realmente isso e reconhece que a metáfora talvez tenha sido particularmente infeliz. Afinal, foi o mesmo presidente, em discurso feito em Massaranduba (BA), em março de 2006, que afirmou: "É possível fazer política de forma civilizada." E eu realmente prefiro acreditar no Lula de Massaranduba do que no Lula de Ipojuca. Dúvidas excessivas sobre qual é o verdadeiro Lula, ou percepções de que a resposta é "ambos", poderiam levar alguns a endossar a observação de Ferreira Gullar: "Ele diz qualquer coisa a qualquer hora, depende do público que o assiste e da conveniência do momento."
E chego aqui ao que efetivamente importa, no momento e nos próximos anos. Fica e ficará cada vez mais claro que o contexto internacional mudou desde fins de 2007 e que a economia mundial será menos favorável, mais turbulenta, mais volátil e, certamente, crescerá menos nos próximos dois anos em razão da grave crise de confiança que ora assola o sistema financeiro e os mercados de crédito do mundo desenvolvido.
Não tenhamos dúvidas de que seremos afetados enquanto esta crise estiver seguindo seu curso, que não será de curta duração. Mas, como toda crise, será resolvida um dia - ainda que a um custo não trivial. E também, como toda crise, oferece oportunidades não só a empresas, como a países que não se deixam levar por excessos de complacência e auto-indulgência derivados de vários anos de desempenho favorável.
Mais uma razão para um sereno olhar à frente. Se os ventos que sopram do exterior se tornam menos favoráveis, há que avançar mais - e não menos - na consolidação e ampliação de mudanças estruturais e avanços institucionais e no compromisso firme com políticas macro e microeconômicas consistentes. O Brasil está excepcionalmente bem posicionado para aproveitar as oportunidades que crises como esta, e sua superação, sempre encerram.
Um país que, exatamente porque está com os olhos firmemente postos no futuro, não perde tempo com discussões estéreis, falsos dilemas e insensatas condenações a esforços passados. Sem ajuda dos quais seu sucesso atual e suas promissoras possibilidades futuras simplesmente não existiriam na configuração de hoje.
Pedro Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
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