sexta-feira, 13 de junho de 2008

Opinião do Estadão: A corretagem imoral do governo

A tropa de choque que o Planalto designou - e treinou - para intimidar a ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) Denise Abreu, no seu depoimento de 9 horas à Comissão de Infra-Estrutura do Senado, na quarta-feira, terminou a jornada sem motivos para festejar. A qualquer observador isento, ficou nítida a vantagem da responsável por repor na ordem do dia o pantanoso caso da venda da Varig sobre os encarregados de desqualificar as suas denúncias por quaisquer meios, incluindo ataques pessoais. Com palavras fortes e relatos verossímeis, Denise reiterou as acusações formuladas semana passada em entrevista a este jornal, segundo as quais a titular da Casa Civil, Dilma Rousseff, e a secretária-executiva da Pasta, Erenice Guerra, constrangeram a Anac para que não criasse obstáculos à compra da Varig, em regime de recuperação judicial desde junho de 2005, pela sua antiga subsidiária, a VarigLog.

Esta havia sido adquirida em janeiro de 2006 por um fundo americano de investimentos, com três sócios brasileiros e a assessoria - que se revelaria preciosa - do advogado Roberto Teixeira, compadre do presidente Lula. A transação de US$ 24 milhões se consumou em julho daquele ano. Oito meses depois a VarigLog vendeu a Varig à Gol por US$ 320 milhões. Em essência, Denise revelou que a Casa Civil funcionou ao longo do processo como uma ágil corretora de negócios, agindo em várias frentes. De um lado, praticamente impedindo que a Anac checasse a origem dos recursos do trio brasileiro da VarigLog, diante da suspeita de que se tratava de testas-de-ferro do grupo americano, para burlar a exigência do Código Brasileiro de Aeronáutica de que estrangeiros não podem ter mais de 20% do capital de uma transportadora aérea nacional. De outro lado, para garantir que os futuros donos da Varig fossem poupados de herdar as dívidas fiscais, trabalhistas e creditícias da empresa quebrada, no valor de R$ 7 bilhões. E tudo isso a toque de caixa.

"Não recebi ordem de ninguém (para desistir da investigação)", disse Denise em seu depoimento. "Mas fui fortemente questionada (sobre os motivos de sua iniciativa)." Certa vez, a então diretora e outros integrantes do que deveria ser uma agência reguladora independente dos governos, por sua condição de órgão do Estado, foram sabatinados durante 8 horas, no Palácio do Planalto, pela secretária-executiva Erenice Guerra. Numa patente exorbitância, ela insistiu em ser informada, nos mínimos detalhes, do andamento do caso Varig. "Isso não é pressão?", argumentou Denise. "Um servidor público não se sente pressionado? Sente-se." Como se sabe, a ingerência na Anac - "imoral e até ilegal", qualificou ela - funcionou. A agência aprovou sem delongas a composição societária da VarigLog e um recém-nomeado procurador-geral da Fazenda Nacional soltou um parecer contra a sucessão da dívida da Varig, que inspirou sentença no mesmo sentido do juiz Luiz Roberto Ayub, da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, responsável pela recuperação judicial da Varig.

A sua venda e posterior revenda seriam impensáveis se, em 2005, o governo não tivesse cedido ao lobby da Varig, introduzindo na undécima hora, na nova Lei de Falências, um artigo feito sob medida para salvá-la, como ficou público e notório. O presidente Lula foi aconselhado por sua assessoria jurídica a vetar esse artigo - o que, obviamente, não fez. O artigo é justamente o que aplica a norma da recuperação judicial a concessionárias de serviços públicos, como companhias de aviação. A lei permite que empresas privadas falidas continuem a funcionar, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. Mas a extensão desse instituto a concessionárias de serviços representa uma enormidade. Além disso, deu margem à interpretação contestável do juiz Ayub de que os adquirentes da Varig não responderiam pelo seu passivo. Graças ao estratagema do Planalto, uma empresa "insalvável" - que quando já arcava com um déficit operacional da ordem de R$ 200 milhões distribuía cotas de participação nos lucros aos seus diretores e funcionários - tornou-se um ótimo negócio para os seus sucessivos compradores. É o pano de fundo da escandalosa intromissão na Anac denunciada pela ex-diretora Denise Abreu. Seu depoimento cobre de razão a decisão do juiz José Paulo Magano de pedir ao Ministério Público Federal que investigue o negócio.
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