Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo
Décadas atrás havia uma discussão sobre a "modernização" do Brasil. Correntes mais dogmáticas da esquerda denunciavam os modernizadores como gente que acreditava ser possível transformar o País saltando a revolução socialista. Com o passar do tempo, quase todos se esqueceram das velhas polêmicas e passaram a se orgulhar das grandes transformações ocorridas. Até mesmo pertencermos aos Brics, uma marca criada em 1999 pelo banco Goldman Sachs, passou a ser motivo de orgulho dos dirigentes petistas: finalmente somos uma economia emergente!
Na verdade, o Brasil é mais do que uma "economia emergente", é uma "sociedade emergente" ou, para usar o título de um livro que analisa bem o que aconteceu nas últimas décadas, somos um novo país (ver Albert Fishlow, O Novo Brasil, Saint Paul Editora, 2011). Para entender as dificuldades políticas que foram transpostas para acelerar estas transformações basta ler a primeira parte de um livrinho que tem o instigante título Memórias de um Soldado de Milícias, escrito por Luiz Alfredo Raposo e publicado este ano em São Luís do Maranhão.
Embora os livros comecem a registrar o que é este novo Brasil - e há outros, além do que mencionei -, o senso comum, especialmente entre os militantes ou representantes dos partidos políticos e seus ideólogos, ainda não se deu conta por completo dessas transformações e de suas consequências.
Os fundamentos deste novo País começaram a se constituir a partir das greves operárias do fim da década de 1970 e da campanha das Diretas-Já, que conduziram à Constituição de 1988. Este foi o marco inicial do novo Brasil: direitos assegurados, desenho de um Estado visando a aumentar o bem-estar do povo, sociedade civil mais organizada e demandante, enfim, liberdade e comprometimento social. Havia na Constituição, é certo, entraves que prendiam o desenvolvimento econômico a monopólios e ingerências estatais. Sucessivas emendas constitucionais foram aliviando essas amarras, sem enfraquecer a ação estatal, mas abrindo espaço à competição, à regulação e à diversificação do mundo empresarial.
O segundo grande passo para a modernização do País foi dado pela abertura da economia. Contrariando a percepção acanhada de que a "globalização" mataria nossa indústria e espoliaria nossas riquezas, houve a redução de tarifas e diminuição dos entraves ao fluxo de capitais. Novamente os "dogmáticos" (lamento dizer, PT e presidente Lula à frente) previram a catástrofe que não ocorreu: "sucateamento" da indústria, desnacionalização da economia, desemprego em massa, e assim por diante. Passamos pelo teste: o BNDES atuou corretamente para apoiar a modernização de setores-chave da economia, as privatizações não deram ensejo a monopólios privados e mantiveram boa parte do sistema produtivo sob controle nacional, seja pelo setor privado, seja pelo Estado, ou em conjunto. Houve expansão da oferta e democratização do acesso a serviços públicos.
O terceiro passo foi o Plano Real e a vitória sobre a inflação, não sem enormes dificuldades e incompreensões políticas. Juntamente com a reorganização das finanças públicas, com o saneamento do sistema financeiro e com a adoção de regras para o uso do dinheiro público e o manejo da política econômica, a estabilização permitiu o desenvolvimento de um mercado de capitais dinâmico, bem regulado, e a criação das bases para a expansão do crédito.
Por fim, mas em nada menos importante, deu-se consequente prática às demandas sociais refletidas na Constituição. Foram ativadas as políticas sociais universais (educação, saúde e Previdência) e as focalizadas: a reforma agrária e os mecanismos de transferência direta de renda, entre eles as bolsas, a primeira das quais foi a Bolsa-Escola, substituída pela Bolsa-Família. Ao mesmo tempo, desde 1993 houve significativo aumento real do salário mínimo (de 44% no governo do PSDB e de 48% no de Lula).
Os resultados veem-se agora: aumento de consumo das camadas populares, enriquecimento generalizado, multiplicação de empresas e das oportunidades de investimento, tanto em áreas tradicionais quanto em áreas novas. Inegavelmente, recebemos também um impulso "de fora", com o boom da economia internacional de 2004-2008 e, sobretudo, com a entrada vigorosa da China no mercado de commodities.
Por trás desse novo Brasil está o "espírito de empresa". A aceitação do risco, da competitividade, do mérito, da avaliação de resultados. O esforço individual e coletivo, a convicção de que sem estudo não se avança e de que é preciso ter regras que regulem a economia e a vida em sociedade. O respeito à lei, aos contratos, às liberdades individuais e coletivas fazem parte deste novo Brasil. O "espírito de empresa" não se resume ao mercado ou à empresa privada. Ele abrange vários setores da vida e da sociedade. Uma empresa estatal, quando o possui, deixa de ser uma "repartição pública", na qual o burocratismo e os privilégios políticos, com clientelismo e corrupção, freiam seu crescimento. Uma ONG pode possuir esse mesmo espírito, assim como os partidos deveriam possuí-lo. E não se creia que ele dispense o sentimento de coesão social, de solidariedade: o mundo moderno não aceita o "cada um por si e Deus por ninguém". O mesmo espírito deve reger os programas e ações sociais do governo na busca da melhoria da condição de vida dos cidadãos.
Foi para isso que apontei em meu artigo na revista Interesse Nacional, que tanto debate suscitou, às vezes a partir de leituras equivocadas e mesmo de má-fé. É inegável que há espaço para as oposições firmarem o pé neste novo Brasil. Ele está entre os setores populares e médios que escapam do clientelismo estatal, que têm independência para criticar o que há de velho nas bases políticas do governo e em muito de suas práticas, como a ingerência política na escolha dos "campeões da globalização", o privilegiamento de setores econômicos "amigos", a resistência à cooperação com o setor privado nos investimentos de infraestrutura, além da eventual tibieza no controle da inflação, que pode cortar as aspirações de consumo das classes emergentes. Para ocupar esse espaço, entretanto, é preciso que também as oposições se invistam do espírito novo e sejam capazes de representar este novo Brasil, tão distante do pequeno e às vezes mesquinho dia a dia da política congressual.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi presidente da República
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