De volta ao Brasil de sempre, resignaram-se há oito anos as paredes do gabinete presidencial depois de uma ligeira contemplação do novo inquilino. Desde 1960, quando Juscelino Kubitschek inaugurou o Palácio do Planalto, a grande sala no terceiro andar já abrigou napoleões de hospício, generais de exército da salvação, perfeitas cavalgaduras, messias de gafieira, gatunos patológicos, vigaristas provincianos e outros exotismos da fauna brasileira. Por que não um Luiz Inácio Lula da Silva?
Quem conhece a saga republicana sabe que a ascensão ao poder de um ex-operário metalúrgico só restabeleceu a rotina da anormalidade que vigora, com curtíssimos intervalos, desde o inquilinato de Jânio Quadros. Na galeria dos retratos dos presidentes, Lula está à vontade ao lado dos vizinhos de parede. Sente-se em casa. A discurseira delirante e ininterrupta está em perfeita afinação com a ópera do absurdo. O acorde dissonante é Fernando Henrique Cardoso. Um confirma a regra. O outro é a exceção.
O migrante nordestino que chegou à Presidência sem escalas em bancos escolares tem tudo a ver com o país dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância endêmica e condenados a uma vida não vivida. Esse mundo é indulgente com intuitivos que falam sem parar sobre assuntos que ignoram. E é hostil a homens que pensam e agem com sensatez. É um mundo que demora a alcançar em sua exata dimensão a lucidez do sociólogo nascido no Rio que tinha escrito muitos livros quando se instalou no Planalto.
O Brasil de Lula tem a cara primitiva de sempre. O Brasil de FHC provou que a erradicação do atraso não é impossível. Pareceu até civilizado no primeiro dia de 2003, quando se completou um processo sucessório exemplarmente democrático. Durante a campanha eleitoral, o presidente fez o contrário do que faria o sucessor. Embora apoiasse José Serra, não mobilizou a máquina administrativa em favor do candidato, não abandonou o emprego para animar palanques e consultou os principais concorrentes antes de tomar decisões cujos efeitos ultrapassariam os limites do mandato prestes a terminar.
Nem Ruth Cardoso foi poupada
Consumada a vitória do adversário, FHC pilotou o período de transição e ajudou a conter a fuga de investidores inquietos com a folha corrida do PT. O Brasil de janeiro de 2003 tinha poucas semelhanças com o que Itamar Franco encontrou depois do despejo de Fernando Collor. Em 1994, o ministro da Fazenda de Itamar comandou a montagem do Plano Real. Nos oito anos seguintes, fez o suficiente para entregar a Lula um Brasil alforriado da inflação e da irresponsabilidade fiscal, modernizado pela privatização de mamutes estatais deficitários e livre de tentações autoritárias.
“Aqui você deixa um amigo”, disse o sucessor com a faixa presidencial já enfeitando o peito. Foi a primeira das mentiras, vigarices, trapaças e traições que alvejariam, nos oito anos seguintes, a assombração que está para o SuperLula como a kriptonita para o Super-Homem. Criminosamente solidário com José Sarney, a quem chamava de ladrão, obscenamente amável com Fernando Collor, a quem chamava de corrupto, o ressentido incurável, incapaz de absorver as duas derrotas no primeiro turno e conformar-se com a inferioridade intelectual, guardou o estoque inteiro de truculências e patifarias para tentar destruir um antigo aliado, um adversário leal e um homem honrado.
Lula nunca pronuncia o nome do antecessor, evita até identificá-lo pelas iniciais. Delega as agressões frontais a grandes e pequenos canalhas, que explicitam o que o chefe insinua. Há sempre os sarneys, dirceus, jucás, berzoinis, collors, dutras, renans, mercadantes, tarsos, gilbertinhos, dilmas e erenices prontos para a execução do trabalho sujo que não poupou sequer Ruth Cardoso, vítima do papelório infame forjado em 2008 na fábrica de dossiês da Casa Civil. A cada avanço dos farsantes correspondeu uma rendição sem luta do PSDB, do PPS e do DEM. FHC não é atacado pelos defeitos que tem ou pelos erros que cometeu, mas pelas qualidades que exibe e pelas façanhas que protagonizou.
Ele merecia adversários menos boçais e aliados mais corajosos. Há algo de muito errado com a oposição oficial quando um grande presidente, para ressuscitar verdades reiteradamente assassinadas desde 2003, tem de defender sozinho um patrimônio político-administrativo que deveria ser festejado pelos partidos que o apoiaram. Há algo de muito estranho com um PSDB que não ouve o que diz seu presidente de honra. Nem lê o que escreve, como atesta a releitura de dois artigos publicados no Estadão.
O ponto fora da curva
Em outubro de 2008, FHC avisou que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do chefe de governo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas. “Para onde vamos?”, perguntava o título do primeiro artigo. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos. O Brasil de Lula foi para Dilma Rousseff. É cedo para saber onde acabará.
Em fevereiro, com 968 palavras, FHC enterrou no jazigo das malandragens eleitoreiras a fantasia costurada durante sete anos. “Para ganhar sua guerra imaginária, o presidente distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação, nega o que de bom foi feito e apossa-se de tudo que dele herdou como se dele sempre tivesse sido”, resumiu. Depois de ensinar que o Brasil existia antes de Lula e existirá depois dele, recomendou que se apanhasse a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”.
Em vez de seguir o conselho e sugerir a Lula que topasse um debate com Fernando Henrique, José Serra reincidiu no crime praticado em 2002 — com agravantes. Além de esconder o líder que aumentou a distância entre o país e a era das cavernas, apareceu no horário eleitoral ao lado de Lula, convertido num Zé decidido a prosseguir a obra do Silva. Aloysio Nunes Ferreira fez o contrário. Tinha 3% das intenções de voto quando transformou FHC em principal avalista da candidatura. Elegeu-se senador com a maior votação da História. Saudado por sorrisos, cumprimentos e aplausos quando caminha nas ruas de São Paulo, FHC nunca foi hostilizado em público. Depois da vaia no Maracanã, Lula não voltou a dar as caras fora do circuito das plateias amestradas.
Desde o dia da eleição, FHC tem exortado o PSDB a transformar-se num partido de verdade, com um programa que adapte à realidade brasileira a essência da social-democracia, combata sem hesitações a corrupção institucionalizada e, sobretudo, aprenda que o papel da oposição é opor-se, como ele próprio tem feito há oito anos. “Por enquanto, o único partido que temos é o PT”, repetiu há dias. “Sem uma linha política clara a seguir, o PSDB continuará a agir segundo as circunstâncias e a perder tempo com questões pontuais”. Pode perder de vez também o respeito e a confiança do eleitorado oposicionista, adverte a reação provocada pela Carta de Maceió. O teor vergonhoso do documento comprova que os governadores tucanos não captaram o recado do patriarca.
Na trajetória desenhada pelos presidentes da República, FHC é o ponto fora da curva. Pode ser esse o seu destino, sugere a paisagem deste fim de 2010. Assegurada a vaga na História, poupado da obsessão pelo poder, ainda assim não recusa o combate, não faz acordos, não capitula. Em respeito à própria biografia, e por entender que a nação merece algo melhor, continua a apontar a nudez do pequeno monarca. Oito anos mais velho, ficou oito anos mais novo: nenhum líder político é tão parecido com a oposição real, rejuvenescida e revigorada neste outubro por 44 milhões de votos, quanto Fernando Henrique Cardoso.
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