Meu pai morreu de dengue. Ele tinha 66 anos, conseguiu a proeza de chegar vivo até a aposentadoria, mesmo sendo policial civil no Rio de Janeiro. Meu pai começou a trabalhar com 9 anos de idade e já sobrevivera a dois aneurismas cerebrais e a quatro tiros. Apesar da vida castigada, era um homem forte, de ombros largos. Morreu no início do mês por causa de um mosquito que mede 5 milímetros. Além de debater quem é responsável pelo combate ao Aedes, as autoridades discutem se há ou não uma epidemia, mesmo depois de 47 mortes e 32 mil casos da doença.
A cada hora, mais 50 pessoas são infectadas. Foram 1.233 casos novos apenas na última quinta-feira. Para quem espera pela vez de ser atendido na emergência de um hospital público, não resta dúvida: é uma epidemia. No cemitério de Irajá, onde meu pai foi enterrado no dia 4, um cartaz reproduz uma portaria da Secretaria Municipal de Saúde informando que determinadas flores são proibidas nas sepulturas por causa da alta incidência de dengue. A determinação é de 1998. Dez anos depois, o mosquito continua aí. É coisa nossa, está incorporado à paisagem. Todo verão ele chega, faz seu estrago. Até que a gente esqueça – e no ano que vem está aí de novo. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, já disse que a culpa é da população, que não toma os cuidados necessários. No país, o número de casos registrados caiu 40% neste ano. No Rio, houve aumento de 117%.
Se o raciocínio do ministro estiver certo, o povo no Rio de Janeiro deve ser pior que no resto do país. Se estiver errado, talvez nossas autoridades sejam mais incompetentes que as dos outros. Durante a semana, elas se esforçaram para nos dar uma pista do que está acontecendo. O prefeito Cesar Maia disse que o pior já passou e que, nos hospitais do Estado, morrem mais pessoas porque os profissionais de saúde são despreparados. O governador Sérgio Cabral não pôde dar sua contribuição ao debate porque, no auge da crise, visitava a Coréia. Temporão montou um “gabinete” para combater a doença.
A dengue foi descoberta no fim do século XVIII na Ilha de Java, na Ásia. Estava erradicada no Brasil desde 1957. Em 2002, voltou com força e matou 91 pessoas no Rio. Para se reproduzir, o mosquito precisa de água parada – e autoridades idem. Quase metade das vítimas são crianças e adolescentes até 15 anos. Agora, me preocupo com minha filha e com meus enteados, todos pequenos. Já passamos a usar repelentes durante todo o dia. Confesso que, até a morte de meu pai, eu acompanhava o noticiário da dengue sem grande interesse. Morreu mais um hoje, amanhã morre outro. Ver a certidão de óbito dele, que tem exatamente o mesmo nome incomum que eu, foi como ler minha certidão. Sim, poderia ser eu. Poderia ser você. Até que aconteça com um dos nossos, pensamos pouco nisso, um antídoto para não vivermos com medo.
A gente vai se acostumando, perde a capacidade de se indignar. Também não me indignei quando minha família foi informada que era melhor ir embora da capela às 22 horas e deixar o corpo lá sozinho, porque os assaltos são comuns no cemitério e “temos de tomar cuidado é com os vivos”. Foi o que fizemos. Se fôssemos assaltados, certamente apareceria alguma autoridade para dizer o seguinte: “A culpa é de vocês, todo mundo sabe que ali é perigoso”. No fundo, eles têm razão. A culpa é mesmo nossa. Nós os pusemos lá. Nelito Fernandes, revista Época
Comentário: O homem que gosta de segurar cobra, Nelson Jobim, disse que o Exército auxiliará o Estado do Rio de Janeiro no combate à dengue com a implementação de hospitais de campanha a partir de amanhã. O que eu e a maioria das pessoas custa a entender é por quê a partir de amanhã. Como se sabe, as Forças Armadas estão de prontidão 24 horas por dia (todos os dias). Não existe feriado, tempo ruim ou qualquer coisa que o valha para o adiamento de ações no sentido de auxiliar a população do Rio de Janeiro, que vive uma epidemia dessa doença que continua matando muita gente.
Se questões burocráticas e políticas estão a atravancar o processo de acionamento das Forças Armadas para esta finalidade, estas poderiam e deveriam ser colocadas em outra dimensão.
Mas, como não se pode confiar nesse governo ordinário, é bem provável que a população do Rio de Janeiro continue a sofrer com o descaso por que passa a Saúde no nosso país.
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