O problema é de "padrão civilizatório". Poucas vezes um observador da cena política brasileira, figura pública ainda por cima, conseguiu sintetizar em duas palavras carregadas de significado a essência dos desvios de conduta que se acumulam na era Lula: mensalão, aloprados e dossiês, para citar apenas os mais gritantes. O autor da expressão é o jurista Gilmar Ferreira Mendes, que assume hoje, por dois anos, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), no lugar da ministra Ellen Gracie. "Acredito", disse ele em entrevista ao Estado, publicada na edição de segunda-feira, "que é preciso trazer a luta política para outro padrão civilizatório."
A entrevista decerto representa um dos mais fundamentados convites à reflexão sobre a atualidade nacional abertos ao grande público - pois outro não é o sentido dos seus argumentos nem devem eles ser entendidos como mero movimento numa batalha política subalterna. O ministro respalda, em última análise, a percepção dos que ainda não sucumbiram ao rolo compressor do lulismo, segundo a qual a mentalidade da nova elite dirigente legitima a apropriação do aparelho de Estado para a produção em série de atos que põem em risco os avanços alcançados pelo País, no pré-Lula, para a consolidação do sistema democrático. É o credo confortável de que os fins justificam os meios - sendo o fim primeiro, naturalmente, a permanência no poder.
O novo titular do STF recorre a um conceito clássico da ciência política - patrimonialismo - usualmente aplicado às práticas das velhas caciquias quando se aboletam em qualquer instância de governo para nele se manter indefinidamente. À primeira vista, poderia parecer paradoxal que o PT, tendo chegado ao poder envolto na bandeira da moralização dos costumes políticos - como condição necessária ao combate efetivo à miséria e à desigualdade -, reproduza os comportamentos dos quais apregoava ser a antítese. Mas é patrimonialismo puro, por exemplo, acionar a estrutura do Estado para a confecção do que não passa de um instrumento de coação política, o preparo de um rol seleto de gastos palacianos pagos com cartões corporativos na gestão Fernando Henrique.
"Eu acho que fala mal do nosso processo civilizatório a cultura do dossiê, da chantagem, do constrangimento", julga Gilmar Mendes. "Revela um patrimonialismo porque as pessoas têm a noção de que essas informações, às quais tiveram acesso apenas por serem funcionárias públicas, lhes pertencem, pertencem ao seu partido ou à sua causa e, portanto, podem fazer o uso que bem entenderem disso." Se isso não é privatizar o poder, fica difícil imaginar o que seja. A questão de fundo, de todo modo, é a dos efeitos potenciais dessa perversão para a democracia. Já não se trata, no caso, da preservação dos direitos e liberdades fundamentais que lhe são inerentes.
Se a ordem democrática é a da conquista do governo mediante eleições livres, competitivas e regulares, assegurada a plena manifestação do pensamento, é também a do respeito, por parte dos vitoriosos, à integridade da coisa pública. É o que respalda a convicção do jurista de que "a tentativa de aparelhamento do aparato estatal não é uma atitude democrática". Mendes exemplifica: "Eu não posso ter um procurador a meu serviço, não posso ter um agente da Polícia Federal a meu serviço enquanto entidade partidária, não posso induzir um agente da Receita a fazer a investigação que quero contra o meu inimigo."
Eis por que, apropriadamente, ele aconselha "os nossos muitos dirigentes que se dizem fãs de Lenin, Trotski" a ler Karl Popper e Norberto Bobbio, os grandes pensadores da liberal-democracia. Pode esquecer. A "cultura do dossiê" não se voltará contra o lulismo enquanto as coisas continuarem a ser o que são. É ominoso constatar, por exemplo, que, segundo pesquisas de opinião, o escândalo da vez teria até servido para dar à ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, apontada como genitora da operação, mais do que obteve, presumivelmente, nos "comícios" (palavra dela) em que o presidente a apresenta como "mãe do PAC": visibilidade e simpatia.
A propósito, soa definitivo o comentário que se atribui ao governador paulista José Serra: "O povo não sabe o que é dossiê. Acha que é um doce."
Você já parou para pensar no que realmente é uma crise de pânico?
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(*) Lêda Lacerda Muitas vezes, quem nunca passou por uma dessas
experiências pode ter dificuldade em compreender a intensidade do que
acontece com a pessoa...
Há 14 horas
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