quinta-feira, 24 de abril de 2008

Opinião do Estadão: A desconstrução do dossiê

Pode-se medir com diferentes instrumentos a estatura do debate político brasileiro de uns tempos para cá. Provavelmente um dos métodos mais confiáveis de aferição consiste em cotejar o que ocupa governo e oposição em Brasília com as questões dominantes da atualidade global. O desnível é abissal. No exterior, ditam a ordem do dia problemas do porte das incertezas em torno da equação energética, com o petróleo a US$ 120 o barril, e da segurança alimentar no mundo. Já o tema candente que mobiliza as partes em confronto na arena federal são os aloprados esforços do Planalto para sumir com o escândalo do dossiê - a armação de que poderia perfeitamente bem ter se dispensado, se fosse menos tosco ao lidar com as pressões da fronda oposicionista pela divulgação dos gastos palacianos pagos com cartões corporativos na era Lula.

Como se recorda, a primeira reação do governo à revelação documentada de que fabricava o que pretendia que parecesse um rol de roupa suja da gestão Fernando Henrique nesse mesmo departamento - para tirar o gás das demandas da oposição - foi a de querer tapar o sol com peneira, negando tudo. Fracassada a bisonha tentativa, os planaltinos mudaram o disco: havia, sim, em preparo, uma base de dados para atender a uma exigência do Tribunal de Contas da União (TCU), o que o órgão mais do que depressa tratou de desmentir. Diante disso, brotou a versão de que o material - extraído do arquivo morto do Palácio - se destinaria a atender a uma eventual requisição da CPI dos Cartões (que nem sequer tinha sido criada quando uma força-tarefa de servidores públicos, instalada na Casa Civil da ministra Dilma Rousseff, deu início ao arrolamento).

Quando, mais adiante, com notória relutância, o lulismo consentiu em que a Polícia Federal investigasse o vazamento - mas só o vazamento! - do que seria, conforme as novas alegações da ministra Dilma, uma contrafação da tal base de dados, o seu colega da Justiça, Tarso Genro, receoso dos possíveis desdobramentos do inquérito, se pôs a desconstruir o dossiê. Tortuosamente, deu a entender que o que se aprontou na Casa Civil poderia ser, de fato, um dossiê - mas que mal haveria nisso? "Todo governo tem o direito de coletar dados e compará-los com os de governos anteriores para mostrar a lisura de seu comportamento", enrolou. Foi além: lançou a teoria de que fazer dossiês é uma atividade não só legítima, como franqueada a todos, "governo, oposição e imprensa". Também para essa finalidade, portanto, serviria o dinheiro público.

Mas a desconstrução não parou por aí. Colhido pela advertência, originária da própria Polícia Federal, de que a manipulação da papelada do governo Fernando Henrique ignorou o Decreto nº 4.553 sobre a "salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da administração pública", o ministro se saiu com essa: o que se pagou, e onde, para fornir as despensas do ex-presidente já não interessa à segurança do Estado; o sigilo só deve recobrir os gastos do governante de turno. Isso porque, à diferença do antecessor, ele, sim, corre o risco de ser alvo, por exemplo, de uma tentativa de envenenamento por um demente ou um terrorista que saiba de que açougue saem os bifes consumidos nos palácios presidenciais.

O corolário da teoria tarsiana é que, não havendo sigilo, não houve crime - no máximo, uma "infração administrativa". E a história do vazamento se esvairia num "debate parlamentar entre oposição e governo, e não uma questão relacionada com a jurisdição penal". Ao que tudo indica, porém, a Polícia Federal discorda. O que vale para Lula, sustentam investigadores ouvidos pelo Estado, vale para Fernando Henrique. Afinal, o exame da rotina de gastos do ex-presidente indicaria um padrão ainda seguido pela segurança do Planalto. Em português claro, e simplificando esse tema de alta indagação para os destinos do País, o açougue é o mesmo.

Em suma, foi para isso que se buscou chamar a atenção quando, na abertura deste comentário, se assinalou a imensa distância entre a agenda do presente debate político nacional e aquilo que efetivamente interessa na ordem das coisas.
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