sábado, 10 de maio de 2008

Opinião no Estadão: Credibilidade política

Dom Odilo Scherer

A Lei 9.840, apresentada no Congresso Nacional por iniciativa popular e aprovada em 1999, tornou possível a punição, pela Justiça Eleitoral, de políticos já eleitos, com a perda do mandato. Os processos por "corrupção eleitoral" geralmente envolveram a compra de votos ou o uso da máquina administrativa pública para se beneficiar nas eleições. Para conseguir sua aprovação foram recolhidas mais de 1 milhão de assinaturas por várias entidades da sociedade, lideradas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O mote da campanha era: "Voto não tem preço, tem conseqüências."

O Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, articulado em todo o Brasil (cf. www.lei9840.org.br), monitora a aplicação da Lei 9.840; desde o ano 2000, quando a lei entrou em vigor, até outubro de 2007, já foram cassados 623 mandatários, que incluem desde vereadores (84) até governadores e vices (4); o número mais expressivo de afastados do mandato foi o de prefeitos: ao todo, 508! Para a sua eficácia, essa lei conta com a vigilância da população, que segue atentamente o desempenho dos candidatos durante a campanha eleitoral. Não há dúvida: a Lei 9.840 estimulou o povo brasileiro a assumir o seu papel de sujeito político e fiscalizador das ações daqueles que se apresentam para exercer mandatos públicos.

A lei já tem grande efeito moralizador na política brasileira. Mas será possível proteger a moralidade no exercício do mandato e assegurar a probidade administrativa? Certamente, sim, na medida em que houver uma mobilização da população para isso. E já está em andamento uma nova iniciativa popular para conseguir isso. Durante a assembléia-geral anual da CNBB, em Itaici, no início de abril, foi lançada a campanha de apoio a um projeto de lei complementar à Lei 9.840, para impedir a candidatura de cidadãos que estejam respondendo a processos criminais, ou até já tenham sido condenados em primeira instância por crimes graves. A nova proposta de lei de iniciativa popular já conta com a adesão firme da OAB, da CNBB, da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), além de um grande número de outras organizações da sociedade.

É constatável, e não raro, que em campanhas eleitorais passadas se apresentaram candidatos com ficha criminal a seu desfavor; por vezes, mesmo com processos por homicídio, tráfico de drogas, violência sexual e desvio de recursos públicos. A legislação atual não impede tais candidaturas e só ficam impedidos de disputar eleições aqueles que já tiveram condenação definitiva. Uma vez eleitos, os mandatários adquirem foro privilegiado e se põem praticamente a salvo de qualquer condenação.

Evidentemente, a nova proposta de lei de iniciativa popular não pretende antecipar a declaração de culpa de quem está respondendo a processos criminais, mas quer impedir tais candidaturas até que os interessados fiquem livres de pesadas e fundadas acusações contra eles. O projeto de lei também prevê o veto à candidatura, por oito anos, de políticos que renunciam ao mandato para escaparem à cassação - na atual legislação, eles podem se apresentar livremente já nas eleições sucessivas à renúncia. Finalmente, pelo texto desse novo projeto, seriam ampliados os atuais prazos de inelegibilidade previstos na lei e também estão propostas medidas para agilizar o andamento dos processos na Justiça Eleitoral. De fato, hoje ainda há processos por crimes eleitorais referentes às eleições de 2004, e os eleitos naquele ano já encerram seu mandato em 2008. É preciso tornar simples e mais rápida a tramitação de tais processos, para não esvaziar o efeito da Lei 9.840.

A motivação do novo projeto de lei de iniciativa popular é melhorar ulteriormente a vida política brasileira. De fato, que moral tem para legislar para a comunidade local ou para o País inteiro quem tem ficha criminal pendente na Justiça? Como confiar a administração dos bens do município, do Estado ou da Nação a quem já tenha prevaricado na gestão do patrimônio público? Quem se propõe ao exercício de cargos políticos precisa ter ficha limpa para merecer a confiança dos cidadãos. E não basta argumentar que os eleitores têm a liberdade de escolher quem eles querem: também é preciso resguardar a dignidade e a credibilidade no exercício dos cargos políticos.

Por meio do apoio da CNBB à nova proposta de lei, a Igreja Católica, somando esforços com um grande número de organizações da sociedade civil, deseja fazer sua parte para a reabilitação da ética na política. Existem soluções para os lamentáveis fatos de corrupção no desempenho de cargos políticos, desvio de recursos e apropriação indevida do patrimônio público: a triagem conscienciosa dos candidatos nas urnas, depois de um processo eleitoral livre e participativo, e a constante vigilância da cidadania sobre aqueles que exercem cargos públicos. Melhor, ainda, se pessoas não-idôneas forem barradas de se candidatar para o desempenho de missões que requerem, além de competência, alta confiabilidade moral.

A nova campanha já está nas ruas e precisa recolher pelo menos 1.200.000 assinaturas em todo o Brasil. Se for bem-sucedida e conseguir a aprovação em tempo curto, a proposta de lei complementar para combater a corrupção na política poderá valer até mesmo para as eleições municipais deste ano. As adesões poderão ser feitas, com o Título de Eleitor na mão, numa infinidade de lugares relacionados com as instituições e organizações promotoras da campanha.


Dom Odilo Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo
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